Impasse: presença de construtoras em associações gera controvérsia
Marcelo Tapai | Em 31 de março de 2016 | Direito Imobiliário
RIO – As associações de moradores existem para representar moradores. Em alguns condomínios da região da Barra da Tijuca, porém, a relação não é tão simples. Estes grupos, geridos por estatutos como qualquer outra associação civil, não têm apenas condôminos como membros. Deles, participam também representantes das construtoras do empreendimento. E, em alguns casos, reclamam os residentes, as empresas têm mais força.
No Cidade Jardim, o conflito entre a Associação dos Amigos do Cidade Jardim (Ascija) e os moradores é constante. Ao comprarem seus imóveis, todos tiveram de se associar à Ascija, que cuida também dos espaços públicos na área do condomínio, e pagar uma mensalidade. O que muitos não sabiam, porém, é que a Ascija não seria controlada por eles, e sim pelas construtoras Carvalho Hosken e RJZ Cyrela.
O controle é assegurado pelo estatuto da Ascija, datado de 2010. Cada prédio do condomínio elege um conselheiro, que tem direito a voto nas assembleias da Ascija. São quatro prédios; portanto, os moradores têm quatro votos. Carvalho Hosken e Cyrela porém, somam 16, porque o estatuto prevê que os lotes vazios também têm direito à representação. Um artigo do estatuto diz ainda que as empresas podem vetar qualquer decisão tomada em assembleia geral enquanto forem donas de ao menos um apartamento no local. Outro dá a elas o direito de nomear o presidente do conselho comunitário pelos primeiros dez anos de existência da Ascija.
– Além de ter controle, eles pagam menos – reclama o advogado Antônio Carlos da Silva, morador.
É que, pelo estatuto do Cidade Jardim, a mensalidade dos lotes não construídos custa a metade das demais; e a dos lotes em construção é 25% menor. Na planilha de março da Ascija, o total arrecadado com mensalidades foi de R$ 858 mil, dos quais apenas R$ 279 mil couberam a Carvalho Hosken e Cyrela.
– Quem paga mais pela Ascija deveria ter mais votos, e não o contrário – avalia Silva. – Essa é uma relação desigual. Em agosto do ano passado, os moradores do Cidade Jardim fizeram um pleito: queriam um ônibus que os levasse até o shopping Nova América. Juntaram 663 assinaturas, o que corresponde a aproximadamente 5% do total dos moradores do residencial. No dia 20 daquele mês, em reunião na sede da Cyrela, seus quatro conselheiros votaram a favor de uma assembleia extraordinária para alterar o estatuto e garantir o serviço. A representante da construtora, porém, votou contra, registrando em ata que não via representatividade no pedido.
– É uma associação meramente ilustrativa. As construtoras estão de olho no interesse comercial delas, e não nos moradores. Decidem o que vai tornar mais fácil vender unidades – opina a empresária Maria Cristina Costa, moradora do condomínio.
Em relação ao Cidade Jardim, a Carvalho Hosken diz que sempre vota com a maioria e que não exerce controle sobre o condomínio por não possuir mais terrenos no local, apesar de deter unidades individuais. Em nota, a Cyrela, por sua vez, afirmou que “o formato de divisão de votos se dá com base na preocupação das incorporadoras e fundadoras para que seja preservado o conceito original de criação do bairro e dos serviços prestados enquanto estiver em desenvolvimento. Trata-se de uma prática comum neste tipo de estrutura”. Segundo a empresa, todos os clientes, já na aquisição do imóvel, recebem uma cópia do estatuto. Moradores negam e lembram que muitos compraram seus imóveis na planta em 2008 ou 2009, antes, portanto, de a associação existir.
A pedido do GLOBO-Barra, o especialista em direito imobiliário Marcelo Tapai, da Tapai Advogados, analisou o estatuto. Ele concorda em parte com a Cyrela. De acordo com ele, é comum a prática de dar aos lotes vazios o direito de voto. Mas faz uma ressalva:
– Existem algumas aberrações. Os moradores podem reclamar quando o estatuto diz que as construtoras vão ter direito de veto sobre todas as decisões mesmo só tendo uma unidade lá.
De acordo com o advogado, é necessário tomar muito cuidado quando se compra apartamentos em loteamentos:
– A pessoa tem que ter noção dos riscos, especialmente quando se trata dessas grandes incorporadoras. Os poderes abusivos de um estatuto podem ser questionados judicialmente, mas isso não é fácil de resolver.
PODER MENOR NA PENÍNSULA
No condomínio Península, erguido pela Carvalho Hosken, há um estatuto similar ao da Cidade Jardim regendo a Associação de Amigos da Península (Assape). Este último, porém, concede menos poder à construtora, embora os votos dos lotes não construídos tenham 153 vezes mais peso do que os das unidades residenciais prontas. Além disso, lá a empresa só tem poder de veto em casos específicos.
– No Cidade Jardim, os moradores estão em situação pior que a nossa – avalia Paulo Gianini, que vive no Península. – Aqui eles podem eleger conselheiro, mas, como não há mais muitos prédios para construir, não têm tantos votos.
Gianini afirma ter passado por uma experiência desagradável como conselheiro. Diz que sofria pressões da Assape por ter posições contrárias à majoritária:
– Chegaram a dizer que, se eu não saísse, seria tirado da associação. Mas não passou da ameaça.
O principal conflito ocorrido entre moradores e a Assape foi em 2011, quando eles solicitaram uma linha de ônibus até o Centro, cujo custo seria rateado por todos os moradores. Como no caso da Cidade Jardim, o pedido foi negado.
A justificativa da Assape, porém, foi amparada num artigo do estatuto segundo o qual “despesas com transporte coletivo de longa distância” seriam rateadas entre os usuários, e não entre todos os moradores. Os interessados ficaram livres para levar a proposta adiante desta forma, mas o processo não avançou.
O diretor de marketing da Carvalho Hosken, Henrique Caban, avalia que este foi o único conflito direto ao longo dos anos. Mesmo assim, há quem se ressinta da relação com a construtora. Na época, moradores fizeram uma manifestação pela criação da linha de ônibus. Dias depois, nasceu o grupo Reais Amigos da Península, com página no Facebook.
– Criei o grupo porque acredito que as coisas podem ser feitas de forma melhor, mais transparente – diz seu fundador, José Bezerra Gomes.
Quando O GLOBO-Barra foi ao condomínio fazer a foto de Gomes em frente à sede da Assape, supervisores da associação e seguranças da Transegur, que presta serviço à associação, tentaram impedir o trabalho. Após uma discussão de cerca de 15 minutos, a situação se resolveu. Para Gomes, porém, o caso é representativo de que há espaço para a relação melhorar:
– Este é o grande problema. É o meu dinheiro sendo usado para fiscalizar o que eu estou fazendo.
Em nota, a Assape informou que a orientação a respeito de fotos existe não apenas para a sede da Associação mas para toda Península. “Os colaboradores são orientados a verificar tudo que está fora da normalidade da rotina do morador. Cuidamos da preservação do bem e privacidade do associado.”
Nem sempre a relação é conflituosa, porém. No Recreio, o síndico do Residencial Life, Sullivan Rodrigues, chamou a Calper, construtora que ergueu o condomínio, para fazer parte da associação de moradores. Criada há menos de um ano, a Associação Recanto do Recreio tem a empresa entre os fundadores.
– Foi a forma que encontramos de ter uma relação mais próxima com a construtora, que ergueu a maior parte dos prédios da região – diz Rodrigues.
Naquela área, a Calper tem uma série de contrapartidas para entregar, como a duplicação da Rua Silvia Pozzano, onde fica o Residencial Life. Para Rodrigues, a presença da construtora no grupo facilita a cobrança:
– O Ricardo (Ricardo Ranauro, presidente da Calper) entende que o papel da Calper na associação é interagir conosco, para o condomínio ser um sucesso.
De acordo com o síndico, a estratégia tem dado certo. A Calper, segundo ele, participou de todas as reuniões até agora. E, na hora de decidir, a construtora é só mais uma.
– Como qualquer membro, ela tem direito a um único voto – explica.
Por Fábio Rossi